por Miguel Angelo O. do Carmo
“O verdadeiro homem honesto é o que de nada se vangloria” - La Rochefoucauld
A primeira dissertação da Genealogia da Moral denuncia a submissão dos valores que dizem sim à vida; mais que isso, procura mostrar em que sentido os valores “bom e ruim” são desqualificados em prol dos valores “bom e mau”, a partir de uma estratégia moral que aponta para uma verdade negra, um trabalho psicológico que, justificando com todas as letras uma grande mentira para a humanidade, realiza o “apequenamento” dos instintos do homem. A referência é o livro do inglês Paul Rée, e é nessa direção que a tarefa dos “psicólogos ingleses” é revelada: “colocar em evidência o lado vergonhoso de nosso mundo interior”.
As razões para esse apequenamento, para a impregnação da oposições dos valores, são colocadas logo no segundo parágrafo, razões essas que querem ser “essencialmente a-histórica”. Essa falta de “espírito histórico”, para Nietzsche, já contaminou os filósofos e é preciso denunciá-la nos genealogistas da moral. Dizem eles que a origem do valor “bom” está na utilidade (“as ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis”), que somada ao esquecimento (“mais tarde foi esquecida essa origem do louvor”) e ao hábito (“e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas, foram também sentidas como boas”), resultou em um erro (“— como se em si fossem boas”). Eis a fórmula para o erro da origem do conceito “bom”! Nietzsche desloca essa valoração pela utilidade para o que chamou de “pathos da distância”. Distância pré-estabelecida pela força daqueles que se dizem superiores — temos a construção de um conceito que instaura uma relação não-fictícia de poder. É assim que “o juízo ‘bom’ não provém daqueles aos quais se fez o ‘bem’! Foram os ‘bons’ mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, (...) em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu”. É esse distanciamento dos nobres perante a plebe, pelo poder da linguagem, e não a utilidade, que firma a oposição “bom” e “ruim”.
Mas esse pathos da distância não perdurará. O declínio dos valores aristocráticos permitirá a colocação em jogo de uma outra oposição, ainda pelo disfarce da representação. No lugar de “bom e ruim”, o “instinto de rebanho” psicologicamente trabalhará a oposição “bom e mau”. É esta linguagem que, pela sua força, se sedimentará na consciência da humanidade e dará sentido ao “pecado”, a “má consciência”. Terrificação insidiosa do silêncio das mentes, sedimentação sutil de um pensamento petrificado. O conceito como vilão do pensamento que deveria pensar, ser “forçado a pensar”, e, no entanto, encontra-se em uma redoma de vidro. Pensamento fincado em seu ponto fixo como uma bandeira em uma terra sem vento — nada de movimento.O trabalho da transformação conceitual dos juízos de valor, mais precisamente, do juízo de valor “bom”, é ressaltado pela análise etimológica da palavra. “Bom”, além de designar superioridade, traz também o “traço típico do caráter”, ou seja, para os gregos antigos, ser bom é ser real, verdadeiro, veraz; e é este traço que diferenciava o nobre do homem comum, do mentiroso e covarde. O homem da verdade era um “guerreiro”. Mas a superioridade nobre do guerreiro, com o declínio da nobreza, tornou-se mais espiritual, mais interior, mais sacerdotal, e trouxe ao homem um perigo maior: a capacidade de dissolução da vida. Da superioridade do guerreiro para a do sacerdote, do exterior para o interior, do valor nobre para a sua inversão. Não duvidemos desse acontecimento.Esta inversão de valores, para os sacerdotes, tem um nome, chama-se “tresvaloração dos valores”, dos valores deles (aqui, Nietzsche, através da denúncia desses valores, procurará em toda a sua obra empenhar sua luta em uma nova inversão, que também chamará de transvaloração ou tresvaloração dos valores, o que não significa uma recuperação da saúde aristocrática). Se a valoração aristocrática se ancora na “saúde florescente”, no transbordamento da vida, “em tudo o que envolve uma atividade robusta, livre, contente”, e a sacerdotal na impotência perante a vida, então será pelo povo judeu que a “revolta dos escravos na moral” evidenciará a mais vitoriosa e espiritual das vinganças, um “ódio impotente” consumado em longa data. É por uma inversão que a estratégia vingativa e rancorosa, o momento da “mais doce mentira”, se concretiza silenciosamente.
Contra isso um novo real deve ser produzido. A afirmação nietzschiana do real é a afirmação de que o mundo, esse nosso mundo, é avaliação. Se valoramos as coisas é por um processo lógico-interpretativo de avaliação. Isso significa que por trás de qualquer pensamento a avaliação é intensiva — o movimento da interpretação é o afeto. Wotling, filósofo francês, resume bem essa exigência nietzschiana quando diz que “não há valoração sem acompanhamento afetivo, ou melhor, ainda, sem investimento afetivo. Com efeito, a afetividade é donde a interpretação provém”. O elemento criativo da vida, para Nietzsche, é o afeto, se dá pelo afeto, e será por aí que a sua crítica ao utilitarismo sacerdotal se direcionará.
Triunfo dos valores sacerdotais sobre os valores nobres — como isso é possível? Pela “revolta dos escravos na moral”. Mas o que especifica e caracteriza esta revolta? Diz Nietzsche: “A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores”. Vemos em que sentido um trabalho vingativo torna-se vitorioso, a (re)ação é o que alimenta toda a inversão de valores, o homem ressentido, comum, é o criador do “afeto do desprezo”. No entanto, pelo viés da cultura grega nobre, não há desprezo nem de si nem do outro, pois este é considerado como “infeliz”, “lamentável”, “ruim” — tornar-se um escravo na moral é negar o mundo, o outro e a si mesmo. No valor nobre dos gregos o “fazer bem” era um “estar bem”, enquanto “o homem do ressentimento não é franco, nem ingênuo, nem honesto e reto consigo”. Mas, afinal, qual a criação desse tipo de homem? De olho no inimigo, sua criação é a do homem “mau”, o “mau” — a pedra fundamental para ele se sustentar como o “bom”.
Da inversão de valores o declínio da cultura nobre torna-se evidente. Os instintos afirmadores da vida perdem o primeiro plano e na humanidade dominam a mentira e o sentimento de vingança. São estes instintos que movem a cultura da covardia e do rancor. Não é doloroso afirmar que para Nietzsche o homem é uma “alma malograda”, que o homem, com o seu desejo de cultivar tais instintos, é algo do qual devemos estar cansados. “Projeto inacabado”? Nem projeto nem inacabado, apenas niilismo.O quadro dos valores parece agora estar mais claro — para o nobre, a oposição bom/ruim; para o homem (esse homem), a oposição bom/mau. Se o “bom” do nobre se origina por um distanciamento do que é para ele sem importância, para o ressentido o seu “bom” se origina pelo ódio, pelo rancor a tudo o que é superior.
O quadro dos valores parece agora estar mais claro — para o nobre, a oposição bom/ruim; para o homem (esse homem), a oposição bom/mau. Se o “bom” do nobre se origina por um distanciamento do que é para ele sem importância, para o ressentido o seu “bom” se origina pelo ódio, pelo rancor a tudo o que é superior. A lógica do rancoroso, do fraco, é a de que ao imputar ao forte a maldade por ser forte, ele se afirma como “bom” — eis o seu falso mérito. Afirmação da existência de um “sujeito” naquele que é forte, de uma vida consciente de si e de suas ações, é colocar a fraqueza também como mérito, é a vitória da impotência. Moral da história do lobo (forte) e da ovelha (fraco), ou melhor, do discurso sutil da ovelha sobre o lobo: mérito do fraco — ser forte; mérito do forte — ser fraco.A genealogia da moral nisetzschiana é a denúncia dessa inversão dos valores, a revelação de um poder atuante por trás da linguagem, o domínio se dá pela transmutação dos conceitos — o que era “ruim” passa a ser “mau” e o que é considerado “bom” ganha, em sua origem, uma salvação pela mentira, a mentira de um ideal, de um instinto tomado como ideal.
Nesse ar fétido se esconde um ódio disfarçado em ideal, uma fabricação constante de uma eterna verdade que quer ser verdade. É o valor tomado em si, a imposição sacerdotal de um “bom/mau” no lugar de um “bom/ruim”. A tarefa filosófica, então, segundo Nietzsche, será a questão do valor. A purificação do ar torna-se problematização moral e a destruição de uma longa vitória, a vitória mais importante. O utilitarismo dos valores morais deve ser colocado em jogo e o ultrapassamento das oposições morais não será uma negação das mesmas, mas uma percepção mais afinada de um processo de dominação. Estar além do bem e do mal, eis que a vida, instintiva, não é mais do que isso: vontade de potência. por Miguel Angelo O. do Carmo
“O verdadeiro homem honesto é o que de nada se vangloria” - La Rochefoucauld
A primeira dissertação da Genealogia da Moral denuncia a submissão dos valores que dizem sim à vida; mais que isso, procura mostrar em que sentido os valores “bom e ruim” são desqualificados em prol dos valores “bom e mau”, a partir de uma estratégia moral que aponta para uma verdade negra, um trabalho psicológico que, justificando com todas as letras uma grande mentira para a humanidade, realiza o “apequenamento” dos instintos do homem. A referência é o livro do inglês Paul Rée, e é nessa direção que a tarefa dos “psicólogos ingleses” é revelada: “colocar em evidência o lado vergonhoso de nosso mundo interior”.
As razões para esse apequenamento, para a impregnação da oposições dos valores, são colocadas logo no segundo parágrafo, razões essas que querem ser “essencialmente a-histórica”. Essa falta de “espírito histórico”, para Nietzsche, já contaminou os filósofos e é preciso denunciá-la nos genealogistas da moral. Dizem eles que a origem do valor “bom” está na utilidade (“as ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis”), que somada ao esquecimento (“mais tarde foi esquecida essa origem do louvor”) e ao hábito (“e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas, foram também sentidas como boas”), resultou em um erro (“— como se em si fossem boas”). Eis a fórmula para o erro da origem do conceito “bom”! Nietzsche desloca essa valoração pela utilidade para o que chamou de “pathos da distância”. Distância pré-estabelecida pela força daqueles que se dizem superiores — temos a construção de um conceito que instaura uma relação não-fictícia de poder. É assim que “o juízo ‘bom’ não provém daqueles aos quais se fez o ‘bem’! Foram os ‘bons’ mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, (...) em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu”. É esse distanciamento dos nobres perante a plebe, pelo poder da linguagem, e não a utilidade, que firma a oposição “bom” e “ruim”.
Mas esse pathos da distância não perdurará. O declínio dos valores aristocráticos permitirá a colocação em jogo de uma outra oposição, ainda pelo disfarce da representação. No lugar de “bom e ruim”, o “instinto de rebanho” psicologicamente trabalhará a oposição “bom e mau”. É esta linguagem que, pela sua força, se sedimentará na consciência da humanidade e dará sentido ao “pecado”, a “má consciência”. Terrificação insidiosa do silêncio das mentes, sedimentação sutil de um pensamento petrificado. O conceito como vilão do pensamento que deveria pensar, ser “forçado a pensar”, e, no entanto, encontra-se em uma redoma de vidro. Pensamento fincado em seu ponto fixo como uma bandeira em uma terra sem vento — nada de movimento.O trabalho da transformação conceitual dos juízos de valor, mais precisamente, do juízo de valor “bom”, é ressaltado pela análise etimológica da palavra. “Bom”, além de designar superioridade, traz também o “traço típico do caráter”, ou seja, para os gregos antigos, ser bom é ser real, verdadeiro, veraz; e é este traço que diferenciava o nobre do homem comum, do mentiroso e covarde. O homem da verdade era um “guerreiro”. Mas a superioridade nobre do guerreiro, com o declínio da nobreza, tornou-se mais espiritual, mais interior, mais sacerdotal, e trouxe ao homem um perigo maior: a capacidade de dissolução da vida. Da superioridade do guerreiro para a do sacerdote, do exterior para o interior, do valor nobre para a sua inversão. Não duvidemos desse acontecimento.Esta inversão de valores, para os sacerdotes, tem um nome, chama-se “tresvaloração dos valores”, dos valores deles (aqui, Nietzsche, através da denúncia desses valores, procurará em toda a sua obra empenhar sua luta em uma nova inversão, que também chamará de transvaloração ou tresvaloração dos valores, o que não significa uma recuperação da saúde aristocrática). Se a valoração aristocrática se ancora na “saúde florescente”, no transbordamento da vida, “em tudo o que envolve uma atividade robusta, livre, contente”, e a sacerdotal na impotência perante a vida, então será pelo povo judeu que a “revolta dos escravos na moral” evidenciará a mais vitoriosa e espiritual das vinganças, um “ódio impotente” consumado em longa data. É por uma inversão que a estratégia vingativa e rancorosa, o momento da “mais doce mentira”, se concretiza silenciosamente.
Contra isso um novo real deve ser produzido. A afirmação nietzschiana do real é a afirmação de que o mundo, esse nosso mundo, é avaliação. Se valoramos as coisas é por um processo lógico-interpretativo de avaliação. Isso significa que por trás de qualquer pensamento a avaliação é intensiva — o movimento da interpretação é o afeto. Wotling, filósofo francês, resume bem essa exigência nietzschiana quando diz que “não há valoração sem acompanhamento afetivo, ou melhor, ainda, sem investimento afetivo. Com efeito, a afetividade é donde a interpretação provém”. O elemento criativo da vida, para Nietzsche, é o afeto, se dá pelo afeto, e será por aí que a sua crítica ao utilitarismo sacerdotal se direcionará.
Triunfo dos valores sacerdotais sobre os valores nobres — como isso é possível? Pela “revolta dos escravos na moral”. Mas o que especifica e caracteriza esta revolta? Diz Nietzsche: “A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores”. Vemos em que sentido um trabalho vingativo torna-se vitorioso, a (re)ação é o que alimenta toda a inversão de valores, o homem ressentido, comum, é o criador do “afeto do desprezo”. No entanto, pelo viés da cultura grega nobre, não há desprezo nem de si nem do outro, pois este é considerado como “infeliz”, “lamentável”, “ruim” — tornar-se um escravo na moral é negar o mundo, o outro e a si mesmo. No valor nobre dos gregos o “fazer bem” era um “estar bem”, enquanto “o homem do ressentimento não é franco, nem ingênuo, nem honesto e reto consigo”. Mas, afinal, qual a criação desse tipo de homem? De olho no inimigo, sua criação é a do homem “mau”, o “mau” — a pedra fundamental para ele se sustentar como o “bom”.
Da inversão de valores o declínio da cultura nobre torna-se evidente. Os instintos afirmadores da vida perdem o primeiro plano e na humanidade dominam a mentira e o sentimento de vingança. São estes instintos que movem a cultura da covardia e do rancor. Não é doloroso afirmar que para Nietzsche o homem é uma “alma malograda”, que o homem, com o seu desejo de cultivar tais instintos, é algo do qual devemos estar cansados. “Projeto inacabado”? Nem projeto nem inacabado, apenas niilismo.O quadro dos valores parece agora estar mais claro — para o nobre, a oposição bom/ruim; para o homem (esse homem), a oposição bom/mau. Se o “bom” do nobre se origina por um distanciamento do que é para ele sem importância, para o ressentido o seu “bom” se origina pelo ódio, pelo rancor a tudo o que é superior.
O quadro dos valores parece agora estar mais claro — para o nobre, a oposição bom/ruim; para o homem (esse homem), a oposição bom/mau. Se o “bom” do nobre se origina por um distanciamento do que é para ele sem importância, para o ressentido o seu “bom” se origina pelo ódio, pelo rancor a tudo o que é superior. A lógica do rancoroso, do fraco, é a de que ao imputar ao forte a maldade por ser forte, ele se afirma como “bom” — eis o seu falso mérito. Afirmação da existência de um “sujeito” naquele que é forte, de uma vida consciente de si e de suas ações, é colocar a fraqueza também como mérito, é a vitória da impotência. Moral da história do lobo (forte) e da ovelha (fraco), ou melhor, do discurso sutil da ovelha sobre o lobo: mérito do fraco — ser forte; mérito do forte — ser fraco.A genealogia da moral nisetzschiana é a denúncia dessa inversão dos valores, a revelação de um poder atuante por trás da linguagem, o domínio se dá pela transmutação dos conceitos — o que era “ruim” passa a ser “mau” e o que é considerado “bom” ganha, em sua origem, uma salvação pela mentira, a mentira de um ideal, de um instinto tomado como ideal.
Nesse ar fétido se esconde um ódio disfarçado em ideal, uma fabricação constante de uma eterna verdade que quer ser verdade. É o valor tomado em si, a imposição sacerdotal de um “bom/mau” no lugar de um “bom/ruim”. A tarefa filosófica, então, segundo Nietzsche, será a questão do valor. A purificação do ar torna-se problematização moral e a destruição de uma longa vitória, a vitória mais importante. O utilitarismo dos valores morais deve ser colocado em jogo e o ultrapassamento das oposições morais não será uma negação das mesmas, mas uma percepção mais afinada de um processo de dominação. Estar além do bem e do mal, eis que a vida, instintiva, não é mais do que isso: vontade de potência.
“O verdadeiro homem honesto é o que de nada se vangloria” - La Rochefoucauld
A primeira dissertação da Genealogia da Moral denuncia a submissão dos valores que dizem sim à vida; mais que isso, procura mostrar em que sentido os valores “bom e ruim” são desqualificados em prol dos valores “bom e mau”, a partir de uma estratégia moral que aponta para uma verdade negra, um trabalho psicológico que, justificando com todas as letras uma grande mentira para a humanidade, realiza o “apequenamento” dos instintos do homem. A referência é o livro do inglês Paul Rée, e é nessa direção que a tarefa dos “psicólogos ingleses” é revelada: “colocar em evidência o lado vergonhoso de nosso mundo interior”.
As razões para esse apequenamento, para a impregnação da oposições dos valores, são colocadas logo no segundo parágrafo, razões essas que querem ser “essencialmente a-histórica”. Essa falta de “espírito histórico”, para Nietzsche, já contaminou os filósofos e é preciso denunciá-la nos genealogistas da moral. Dizem eles que a origem do valor “bom” está na utilidade (“as ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis”), que somada ao esquecimento (“mais tarde foi esquecida essa origem do louvor”) e ao hábito (“e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas, foram também sentidas como boas”), resultou em um erro (“— como se em si fossem boas”). Eis a fórmula para o erro da origem do conceito “bom”! Nietzsche desloca essa valoração pela utilidade para o que chamou de “pathos da distância”. Distância pré-estabelecida pela força daqueles que se dizem superiores — temos a construção de um conceito que instaura uma relação não-fictícia de poder. É assim que “o juízo ‘bom’ não provém daqueles aos quais se fez o ‘bem’! Foram os ‘bons’ mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, (...) em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu”. É esse distanciamento dos nobres perante a plebe, pelo poder da linguagem, e não a utilidade, que firma a oposição “bom” e “ruim”.
Mas esse pathos da distância não perdurará. O declínio dos valores aristocráticos permitirá a colocação em jogo de uma outra oposição, ainda pelo disfarce da representação. No lugar de “bom e ruim”, o “instinto de rebanho” psicologicamente trabalhará a oposição “bom e mau”. É esta linguagem que, pela sua força, se sedimentará na consciência da humanidade e dará sentido ao “pecado”, a “má consciência”. Terrificação insidiosa do silêncio das mentes, sedimentação sutil de um pensamento petrificado. O conceito como vilão do pensamento que deveria pensar, ser “forçado a pensar”, e, no entanto, encontra-se em uma redoma de vidro. Pensamento fincado em seu ponto fixo como uma bandeira em uma terra sem vento — nada de movimento.O trabalho da transformação conceitual dos juízos de valor, mais precisamente, do juízo de valor “bom”, é ressaltado pela análise etimológica da palavra. “Bom”, além de designar superioridade, traz também o “traço típico do caráter”, ou seja, para os gregos antigos, ser bom é ser real, verdadeiro, veraz; e é este traço que diferenciava o nobre do homem comum, do mentiroso e covarde. O homem da verdade era um “guerreiro”. Mas a superioridade nobre do guerreiro, com o declínio da nobreza, tornou-se mais espiritual, mais interior, mais sacerdotal, e trouxe ao homem um perigo maior: a capacidade de dissolução da vida. Da superioridade do guerreiro para a do sacerdote, do exterior para o interior, do valor nobre para a sua inversão. Não duvidemos desse acontecimento.Esta inversão de valores, para os sacerdotes, tem um nome, chama-se “tresvaloração dos valores”, dos valores deles (aqui, Nietzsche, através da denúncia desses valores, procurará em toda a sua obra empenhar sua luta em uma nova inversão, que também chamará de transvaloração ou tresvaloração dos valores, o que não significa uma recuperação da saúde aristocrática). Se a valoração aristocrática se ancora na “saúde florescente”, no transbordamento da vida, “em tudo o que envolve uma atividade robusta, livre, contente”, e a sacerdotal na impotência perante a vida, então será pelo povo judeu que a “revolta dos escravos na moral” evidenciará a mais vitoriosa e espiritual das vinganças, um “ódio impotente” consumado em longa data. É por uma inversão que a estratégia vingativa e rancorosa, o momento da “mais doce mentira”, se concretiza silenciosamente.
Contra isso um novo real deve ser produzido. A afirmação nietzschiana do real é a afirmação de que o mundo, esse nosso mundo, é avaliação. Se valoramos as coisas é por um processo lógico-interpretativo de avaliação. Isso significa que por trás de qualquer pensamento a avaliação é intensiva — o movimento da interpretação é o afeto. Wotling, filósofo francês, resume bem essa exigência nietzschiana quando diz que “não há valoração sem acompanhamento afetivo, ou melhor, ainda, sem investimento afetivo. Com efeito, a afetividade é donde a interpretação provém”. O elemento criativo da vida, para Nietzsche, é o afeto, se dá pelo afeto, e será por aí que a sua crítica ao utilitarismo sacerdotal se direcionará.
Triunfo dos valores sacerdotais sobre os valores nobres — como isso é possível? Pela “revolta dos escravos na moral”. Mas o que especifica e caracteriza esta revolta? Diz Nietzsche: “A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores”. Vemos em que sentido um trabalho vingativo torna-se vitorioso, a (re)ação é o que alimenta toda a inversão de valores, o homem ressentido, comum, é o criador do “afeto do desprezo”. No entanto, pelo viés da cultura grega nobre, não há desprezo nem de si nem do outro, pois este é considerado como “infeliz”, “lamentável”, “ruim” — tornar-se um escravo na moral é negar o mundo, o outro e a si mesmo. No valor nobre dos gregos o “fazer bem” era um “estar bem”, enquanto “o homem do ressentimento não é franco, nem ingênuo, nem honesto e reto consigo”. Mas, afinal, qual a criação desse tipo de homem? De olho no inimigo, sua criação é a do homem “mau”, o “mau” — a pedra fundamental para ele se sustentar como o “bom”.
Da inversão de valores o declínio da cultura nobre torna-se evidente. Os instintos afirmadores da vida perdem o primeiro plano e na humanidade dominam a mentira e o sentimento de vingança. São estes instintos que movem a cultura da covardia e do rancor. Não é doloroso afirmar que para Nietzsche o homem é uma “alma malograda”, que o homem, com o seu desejo de cultivar tais instintos, é algo do qual devemos estar cansados. “Projeto inacabado”? Nem projeto nem inacabado, apenas niilismo.O quadro dos valores parece agora estar mais claro — para o nobre, a oposição bom/ruim; para o homem (esse homem), a oposição bom/mau. Se o “bom” do nobre se origina por um distanciamento do que é para ele sem importância, para o ressentido o seu “bom” se origina pelo ódio, pelo rancor a tudo o que é superior.
O quadro dos valores parece agora estar mais claro — para o nobre, a oposição bom/ruim; para o homem (esse homem), a oposição bom/mau. Se o “bom” do nobre se origina por um distanciamento do que é para ele sem importância, para o ressentido o seu “bom” se origina pelo ódio, pelo rancor a tudo o que é superior. A lógica do rancoroso, do fraco, é a de que ao imputar ao forte a maldade por ser forte, ele se afirma como “bom” — eis o seu falso mérito. Afirmação da existência de um “sujeito” naquele que é forte, de uma vida consciente de si e de suas ações, é colocar a fraqueza também como mérito, é a vitória da impotência. Moral da história do lobo (forte) e da ovelha (fraco), ou melhor, do discurso sutil da ovelha sobre o lobo: mérito do fraco — ser forte; mérito do forte — ser fraco.A genealogia da moral nisetzschiana é a denúncia dessa inversão dos valores, a revelação de um poder atuante por trás da linguagem, o domínio se dá pela transmutação dos conceitos — o que era “ruim” passa a ser “mau” e o que é considerado “bom” ganha, em sua origem, uma salvação pela mentira, a mentira de um ideal, de um instinto tomado como ideal.
Nesse ar fétido se esconde um ódio disfarçado em ideal, uma fabricação constante de uma eterna verdade que quer ser verdade. É o valor tomado em si, a imposição sacerdotal de um “bom/mau” no lugar de um “bom/ruim”. A tarefa filosófica, então, segundo Nietzsche, será a questão do valor. A purificação do ar torna-se problematização moral e a destruição de uma longa vitória, a vitória mais importante. O utilitarismo dos valores morais deve ser colocado em jogo e o ultrapassamento das oposições morais não será uma negação das mesmas, mas uma percepção mais afinada de um processo de dominação. Estar além do bem e do mal, eis que a vida, instintiva, não é mais do que isso: vontade de potência. por Miguel Angelo O. do Carmo
“O verdadeiro homem honesto é o que de nada se vangloria” - La Rochefoucauld
A primeira dissertação da Genealogia da Moral denuncia a submissão dos valores que dizem sim à vida; mais que isso, procura mostrar em que sentido os valores “bom e ruim” são desqualificados em prol dos valores “bom e mau”, a partir de uma estratégia moral que aponta para uma verdade negra, um trabalho psicológico que, justificando com todas as letras uma grande mentira para a humanidade, realiza o “apequenamento” dos instintos do homem. A referência é o livro do inglês Paul Rée, e é nessa direção que a tarefa dos “psicólogos ingleses” é revelada: “colocar em evidência o lado vergonhoso de nosso mundo interior”.
As razões para esse apequenamento, para a impregnação da oposições dos valores, são colocadas logo no segundo parágrafo, razões essas que querem ser “essencialmente a-histórica”. Essa falta de “espírito histórico”, para Nietzsche, já contaminou os filósofos e é preciso denunciá-la nos genealogistas da moral. Dizem eles que a origem do valor “bom” está na utilidade (“as ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis”), que somada ao esquecimento (“mais tarde foi esquecida essa origem do louvor”) e ao hábito (“e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas, foram também sentidas como boas”), resultou em um erro (“— como se em si fossem boas”). Eis a fórmula para o erro da origem do conceito “bom”! Nietzsche desloca essa valoração pela utilidade para o que chamou de “pathos da distância”. Distância pré-estabelecida pela força daqueles que se dizem superiores — temos a construção de um conceito que instaura uma relação não-fictícia de poder. É assim que “o juízo ‘bom’ não provém daqueles aos quais se fez o ‘bem’! Foram os ‘bons’ mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, (...) em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu”. É esse distanciamento dos nobres perante a plebe, pelo poder da linguagem, e não a utilidade, que firma a oposição “bom” e “ruim”.
Mas esse pathos da distância não perdurará. O declínio dos valores aristocráticos permitirá a colocação em jogo de uma outra oposição, ainda pelo disfarce da representação. No lugar de “bom e ruim”, o “instinto de rebanho” psicologicamente trabalhará a oposição “bom e mau”. É esta linguagem que, pela sua força, se sedimentará na consciência da humanidade e dará sentido ao “pecado”, a “má consciência”. Terrificação insidiosa do silêncio das mentes, sedimentação sutil de um pensamento petrificado. O conceito como vilão do pensamento que deveria pensar, ser “forçado a pensar”, e, no entanto, encontra-se em uma redoma de vidro. Pensamento fincado em seu ponto fixo como uma bandeira em uma terra sem vento — nada de movimento.O trabalho da transformação conceitual dos juízos de valor, mais precisamente, do juízo de valor “bom”, é ressaltado pela análise etimológica da palavra. “Bom”, além de designar superioridade, traz também o “traço típico do caráter”, ou seja, para os gregos antigos, ser bom é ser real, verdadeiro, veraz; e é este traço que diferenciava o nobre do homem comum, do mentiroso e covarde. O homem da verdade era um “guerreiro”. Mas a superioridade nobre do guerreiro, com o declínio da nobreza, tornou-se mais espiritual, mais interior, mais sacerdotal, e trouxe ao homem um perigo maior: a capacidade de dissolução da vida. Da superioridade do guerreiro para a do sacerdote, do exterior para o interior, do valor nobre para a sua inversão. Não duvidemos desse acontecimento.Esta inversão de valores, para os sacerdotes, tem um nome, chama-se “tresvaloração dos valores”, dos valores deles (aqui, Nietzsche, através da denúncia desses valores, procurará em toda a sua obra empenhar sua luta em uma nova inversão, que também chamará de transvaloração ou tresvaloração dos valores, o que não significa uma recuperação da saúde aristocrática). Se a valoração aristocrática se ancora na “saúde florescente”, no transbordamento da vida, “em tudo o que envolve uma atividade robusta, livre, contente”, e a sacerdotal na impotência perante a vida, então será pelo povo judeu que a “revolta dos escravos na moral” evidenciará a mais vitoriosa e espiritual das vinganças, um “ódio impotente” consumado em longa data. É por uma inversão que a estratégia vingativa e rancorosa, o momento da “mais doce mentira”, se concretiza silenciosamente.
Contra isso um novo real deve ser produzido. A afirmação nietzschiana do real é a afirmação de que o mundo, esse nosso mundo, é avaliação. Se valoramos as coisas é por um processo lógico-interpretativo de avaliação. Isso significa que por trás de qualquer pensamento a avaliação é intensiva — o movimento da interpretação é o afeto. Wotling, filósofo francês, resume bem essa exigência nietzschiana quando diz que “não há valoração sem acompanhamento afetivo, ou melhor, ainda, sem investimento afetivo. Com efeito, a afetividade é donde a interpretação provém”. O elemento criativo da vida, para Nietzsche, é o afeto, se dá pelo afeto, e será por aí que a sua crítica ao utilitarismo sacerdotal se direcionará.
Triunfo dos valores sacerdotais sobre os valores nobres — como isso é possível? Pela “revolta dos escravos na moral”. Mas o que especifica e caracteriza esta revolta? Diz Nietzsche: “A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores”. Vemos em que sentido um trabalho vingativo torna-se vitorioso, a (re)ação é o que alimenta toda a inversão de valores, o homem ressentido, comum, é o criador do “afeto do desprezo”. No entanto, pelo viés da cultura grega nobre, não há desprezo nem de si nem do outro, pois este é considerado como “infeliz”, “lamentável”, “ruim” — tornar-se um escravo na moral é negar o mundo, o outro e a si mesmo. No valor nobre dos gregos o “fazer bem” era um “estar bem”, enquanto “o homem do ressentimento não é franco, nem ingênuo, nem honesto e reto consigo”. Mas, afinal, qual a criação desse tipo de homem? De olho no inimigo, sua criação é a do homem “mau”, o “mau” — a pedra fundamental para ele se sustentar como o “bom”.
Da inversão de valores o declínio da cultura nobre torna-se evidente. Os instintos afirmadores da vida perdem o primeiro plano e na humanidade dominam a mentira e o sentimento de vingança. São estes instintos que movem a cultura da covardia e do rancor. Não é doloroso afirmar que para Nietzsche o homem é uma “alma malograda”, que o homem, com o seu desejo de cultivar tais instintos, é algo do qual devemos estar cansados. “Projeto inacabado”? Nem projeto nem inacabado, apenas niilismo.O quadro dos valores parece agora estar mais claro — para o nobre, a oposição bom/ruim; para o homem (esse homem), a oposição bom/mau. Se o “bom” do nobre se origina por um distanciamento do que é para ele sem importância, para o ressentido o seu “bom” se origina pelo ódio, pelo rancor a tudo o que é superior.
O quadro dos valores parece agora estar mais claro — para o nobre, a oposição bom/ruim; para o homem (esse homem), a oposição bom/mau. Se o “bom” do nobre se origina por um distanciamento do que é para ele sem importância, para o ressentido o seu “bom” se origina pelo ódio, pelo rancor a tudo o que é superior. A lógica do rancoroso, do fraco, é a de que ao imputar ao forte a maldade por ser forte, ele se afirma como “bom” — eis o seu falso mérito. Afirmação da existência de um “sujeito” naquele que é forte, de uma vida consciente de si e de suas ações, é colocar a fraqueza também como mérito, é a vitória da impotência. Moral da história do lobo (forte) e da ovelha (fraco), ou melhor, do discurso sutil da ovelha sobre o lobo: mérito do fraco — ser forte; mérito do forte — ser fraco.A genealogia da moral nisetzschiana é a denúncia dessa inversão dos valores, a revelação de um poder atuante por trás da linguagem, o domínio se dá pela transmutação dos conceitos — o que era “ruim” passa a ser “mau” e o que é considerado “bom” ganha, em sua origem, uma salvação pela mentira, a mentira de um ideal, de um instinto tomado como ideal.
Nesse ar fétido se esconde um ódio disfarçado em ideal, uma fabricação constante de uma eterna verdade que quer ser verdade. É o valor tomado em si, a imposição sacerdotal de um “bom/mau” no lugar de um “bom/ruim”. A tarefa filosófica, então, segundo Nietzsche, será a questão do valor. A purificação do ar torna-se problematização moral e a destruição de uma longa vitória, a vitória mais importante. O utilitarismo dos valores morais deve ser colocado em jogo e o ultrapassamento das oposições morais não será uma negação das mesmas, mas uma percepção mais afinada de um processo de dominação. Estar além do bem e do mal, eis que a vida, instintiva, não é mais do que isso: vontade de potência.
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